quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Os Novos Viciados | Nomofobia

 


Temos a tendência de considerar o cérebro humano como infalível, pelo menos até que este comece a mostrar falhas. Mas quando ela as mostra, o caldo está mais do que entornado, pois estamos completamente à sua mercê. Ele manda em tudo dentro de nós.

Se considerarmos que o nosso cérebro é incomparavelmente mais evoluído do que o dos nossos parceiros de planeta, esse é um facto indesmentível. O que fazemos com ele é brutal, e os cientistas consideram que apenas utilizamos uma pequena fração dele.

Nos anos 50 do século XX, os médicos não tinham opinião sobre o hábito de fumar, e eram dos mais fumavam. Até que começaram a descobrir a relação direta entre o fumar e o aumento dos casos de cancro de pulmão. E as mentalidades começaram a mudar, muito lentamente.

Mais recentemente, foi descoberto que os jogos de vídeo viciam. Agora todos sabemos, é um facto. Porém, antes desta descoberta, quem afirmasse isso era considerado um imbecil. Agora tenta-se restringir o vício aos viciados, exceto se ele for um profissional ou um youtuber dedicado a essa temática, e que ganhe milhões.

De diversão para o vício é um pequeno passo. E tudo por culpa do nosso infalível e inesgotável cérebro, que no caso de alguns vícios, fabrica dopamina, que depois de algum tempo, fica realmente viciado nela. E aí começa o problema, e grave.

Os populares vídeos das redes sociais, curtos e animados, e sequenciais, especialidade do Tik-Tok mas replicado por todas as redes sociais, foram criados para entreter, mas principalmente, para viciar. É que se estiver a ver esses vídeos está a consumir publicidade, vital para as empresas, e a divertir-se, pelo menos é o que diz o seu cérebro, a debitar dopamina sem parar.

Quando está em causa pessoas adultas que se viciam quase sem se aperceberem, a situação pode ser grave, mas estamos a falar de pessoas que têm o seu cérebro já formado, tomam as suas decisões, boas ou más, conscientes ou não das consequências. Mas, e se forem crianças, mesmo bebés, em plena formação?

Vejo como norma os pais das crianças a darem tablets ou smartphones aos seus educandos, estilo “toma lá para não me chateares”, mas esses progenitores não imaginam que deste modo estão a reduzir a esperança dos seus filhos serem pessoas “normais”.

Não consigo sequer imaginar quais vão ser as consequências futuras para o desenvolvimento cognitivo e social das crianças de agora, por estarem sujeitas, desde tenra idade, a ver interruptamente vídeos curtos durante incontáveis horas, e sem qualquer filtro. Estão notoriamente viciadas. Só que esse tema é, ainda, quase, tabu.

As mentalidades só se vão alterar quando os pais das crianças de agora, começarem a notar graves desvios cognitivos e comportamentais, mas nessa altura já vai ser tarde demais, pois o mal já está feito, e só resta a salvação dos mais pequenos. E os mais crescidos que sejam medicados, para sempre.

Num exercício de futurologia, prevejo que os pais de agora vão receber notificações do tribunal, por parte dos filhos, já adultos, a pedirem indemnizações por os terem sujeitado a práticas medievais de entretenimento, tendo como resultado distúrbios psicológicos crónicos e irreparáveis. E acho que merecem todo o dinheiro que irão receber.

Decerto que já observaram a reação das crianças quando se tira o tablet ou o smartphone das suas mãos? É uma reação semelhante a um viciado sem a sua fonte de prazer. De tal maneira que a maioria dos pais devolve o aparelho de imediato, assustado. E a criança retoma a sua atividade viciante, numa aparente acalmia.

Já os multimilionários que são donos das empresas tecnológicas que viciam os pobres com vídeos, colocam os seus filhos em escolas de elite, que se diferenciam das outras por incentivarem os alunos a debaterem ideias, e a não utilizarem écrans. Só quadros de giz!

Os abastados têm tanto receio desse vício que provoca atraso cognitivo e social nos seus filhos, que é norma colocarem cláusulas nos contratos com as amas, proibindo-as de aceder a écrans junto dos seus filhos.

Ouse colocar uma criança viciada em vídeos a resolver um problema de um grau complexo, mas que você faria facilmente nessa idade, e constatará que a maioria não vai conseguir. É que o cérebro dessa criança não foi treinado para essas “proezas”, e agora pode ser tarde demais. Bem-vindo(a) à geração Tik-Tok!

Deixo links de textos e do filme “Life Smartphone”, curta animação de 3 minutos de Xie Chengin

https://www.bbc.com/portuguese/geral-55173900

https://www.bbc.com/portuguese/geral-60403876

https://exame.com/ciencia/como-o-tiktok-atua-no-cerebro-de-jovens-com-videos-curtos-e-personalizados/

https://brasil.elpais.com/brasil/2019/03/20/actualidad/1553105010_527764.html

https://cnnportugal.iol.pt/bebes/parentalidade/novo-estudo-exposicao-de-bebes-a-ecras-pode-atrasar-o-seu-desenvolvimento/20230822/64e3b592d34e371fc0b6dd8c

https://www.youtube.com/watch?v=V1jfFuduZXo


quarta-feira, 15 de novembro de 2023

A Revolta

 

Um pássaro faz um voo rasante sobre a cabeça de um homem, que se assusta com o vento que se formou com a passagem do ser alado, e gatos e cães começam a rondar o homem, com ar ameaçador. Este, que se tinha atirado para o chão por causa do voo do pássaro, começa a recuar de gatas, em perfeito pânico, até bater numa parede. E daí não passou. Cada vez mais animais caíram para cima dele, até dali não sobrar nada a não ser uns restos ensanguentados.

Os gritos do homem e os sons da selvajaria animal não passaram despercebidos às pessoas que passavam perto do beco onde tudo aconteceu, mas quando as autoridades policiais aí chegaram, nada havia a fazer a não ser reportar o sucedido, recolher indícios físicos, tirar fotografias, olhar em redor em busca de suspeitos e esperar que uma razão plausível lhes caia nas mãos. Mas não caiu nada.

O homem foi considerado morto, sendo a causa atribuída de ataque animal. E o assunto foi arquivado, pois a pessoa em causa não era da alta sociedade, não era rica, não era famosa, não era digital influencer, e nem sequer se ficou a saber quem realmente era, pois ninguém deu pela sua falta, pelo que se julgou ser um sem abrigo, um dos muitos que estão pelas ruas, nesta cidade cada vez mais impessoal.

No entanto, eu achei aquela situação demasiado estranha para ser simplesmente arquivada. E procurei saber mais, e depressa descobri que essa não tinha sido uma situação isolada, mas antes algo que estava a acontecer com uma crescente frequência, um pouco por todo o mundo. E aí começaram as questões. Será coincidência, será motivado por alterações ambientais, será propositado?

Comecei a compilar numerosos relatos de violentos ataques de orcas a veleiros no Atlântico, de enormes bandos de pássaros que investiram sobre pessoas em parques nos Estados Unidos, de roedores assassinos no Brasil, entre outros que ficaram na fronteira entre ataques deliberados de animais contra humanos ou simples reações animais. Não restavam dúvidas, os animais estão mesmo a investir contra os humanos!

Pela lógica humana, seria impossível que os animais se tivessem reunido e decidido atacar os humanos,  e mais improvável seria se todos tivessem recebido a decisão. Não estou a imaginar que um macaco da selva do Uganda pudesse ter recebido a mesma instrução de uma orca no Atlântico Norte, nas costas da Gronelândia. Ou seria possível? Não sendo isto, o que teria motivado diferentes animais a atacarem humanos, um pouco por todo o mundo?

Falei com diversas pessoas ligadas ao mundo animal, e algumas delas relataram-me que estavam a notar uma maior agressividade por parte dos animais, sem razão aparente. Outras, porém, disseram que os animais estavam com maior stress, talvez por sentirem com mais intensidade as alterações climáticas, por sentirem os seus habitats cada vez mais ameaçados ou por sentirem que algo está profundamente errado.

Não consigo falar com outros animais sem serem humanos, e não conheço nenhum humano que realmente consiga comunicar com nenhum outro animal. Com tantos avanços tecnológicos, penso que já poderia ser possível, mas como não traria vantagens económicas evidentes, esse campo deve ter ficado na gaveta de alguma grande empresa tecnológica, à espera do melhor momento. Ou da tecnologia certa.

Enquanto que as minhas pesquisas continuavam a progredir a passo de caracol, chegaram às minhas mãos relatos de outros ataques mortíferos, todos atribuídos a animais e sem razão aparente. E a lista de espécies participantes continua a aumentar, e agora só não devem ter participado as tartarugas, não por falta de vontade, mas porque quando elas chegam ao local do crime, este já ocorreu.

Piadas sobre a velocidade das tartarugas à parte, a verdade é que os holofotes do mundo viraram-se para este tema porque ontem uma figura conhecida do mundo da moda foi violentamente atacada por um bando de gatos e cães, à saída de um jantar, à porta de um afamado restaurante de Milano. Os animais surgiram por todos os lados, e entraram no veículo da diva, e esta só foi salva porque os paparazzi presentes a acudiram rapidamente.

Agora não se fala de outra coisa, e os órgãos de comunicação já questionaram todos e mais alguns dos mais famosos zoólogos, psicólogos de animais, tratadores, e inclusive dos charlatães sempre presentes nas cadeias de notícias, que opinam sobre todas as situações, em busca de dinheiro e de tempo de antena. Só se esqueceram de falar comigo, que desde aquele crime no beco, não faço outra coisa na vida.

Às vezes revejo os filmes da série de franchise Planeta dos Macacos, e imagino se os humanos não fossem a espécie mais inteligente. E se, por um acaso da história ou da genética, o desenvolvimento fosse cair noutras “mãos”. Nessa realidade alternativa, será que, nesta altura estariam humanos a aniquilar membros da espécie dominante, tendo como aliados membros das restantes espécies de animais?

Passaram-se anos. Muitos anos. Demasiados anos. Eram eles ou nós. Se fossemos nós, tínhamos de ter aniquilado todos os animais existentes, mas sentimentos de culpa corroeram a maior parte das consciências. O humano começou a compreender que merece a revolta dos animais, e recusou-se a chacinar toda a população animal. Mas aí assinou a sua sentença de morte. Agora nós somos muito poucos, cada vez menos e mais isolados uns dos outros. Em extinção.

Compreendi então que foi o nosso Mundo, doente e quase a morrer, que não teve outra alternativa se não tentar salvar-se, enviando os restantes animais para matar todos os humanos, para todos se salvarem. Todos? Todos não, que nós, os humanos, apesar da sua soberba, não se vão salvar, nem sequer deixar semente, libertando o planeta para este se possa regenerar com as espécies animais que restaram, depois da imensa e trágica barbárie humana.

terça-feira, 18 de julho de 2023

O Fim de Ciclo


 Nunca duvidei do que diziam os cientistas climáticos acerca do aumento das temperaturas, mas sempre julguei que os efeitos não se sentiriam tão rápido, que teríamos mais tempo, que fosse inexorável, mas gradual. Enganei-me. Estamos prestes a ficarmos cozidos.

Em casa em que falta pão, todos ralham e ninguém tem razão, e agora todos apontam o dedo ao El Nino, à El Nina, aos agentes poluentes, aos frigoríficos, e principalmente às vacas, essas doidas, que plenamente conscientes da situação, insistem em libertar metano.

Eu contra mim falo, pois só utilizei os transportes públicos quando não podia conduzir o meu veículo a combustão, pois é bastante cómodo, e como não trabalho longe de casa, é relativamente barato, e assim vou.

Que fazer agora? Aguardar até ficarmos cozidos? Começar a migrar para as regiões mais frescas? E será que os governantes e os locais deixam entrar uma mole imensa de migrantes, em busca de fresco?

Se já somos tantos habitantes, distribuídos pelos quatro cantos do mundo, como será se nos começarmos a concentrar num único canto? O que acontecerá a nível social, alimentar, de saúde pública?

Desconfio que os ricos e os poderosos já começaram a preparar-se para viverem todos juntos, em imensas arcas congeladoras, enquanto o povo vai estar a cozer como lagostas na panela, em crescentes ondas de calor, cada vez maiores e mais frequentes.

E assim se encerrará mais um capítulo da história da Terra, em que vai morrer a maioria dos humanos, junto com a maioria dos outros animais de médio e grande porte, tal como aconteceu na época do Noé.

Acredito que, na extensa vida da Terra, houve outras extinções em massa, já com humanos à mistura, e esta é apenas mais uma, na qual, desta vez, sou eu que estou envolvido, como figurante de uma história com um desfecho conhecido, mas não menos trágico.


sexta-feira, 30 de junho de 2023

A Caixa de Metal Vermelha

 

1.     A Caixa

Um Tesla azul aproxima-se silenciosamente de onde eu estou, e de dentro dele saem apressadamente dois indivíduos que, prontamente, se encaminham para o porta-bagagens, mas ao verificar que querem o mesmo, começam a esmurrar selvaticamente um ao outro, ali mesmo, sem sequer trocarem um insulto ou uma palavra sequer.
As pessoas que estavam nas redondezas afastam-se, sem quererem olhar para a carnificina que ocorre ali naquele momento. O homem que conduzia o veículo estava coberto de sangue, não se sabendo se era dele ou não, e parecia estar a perder o combate. O homem que foi conduzido, mais pequeno, parecia melhor lutador.
De repente e sem qualquer aviso, um Citroen de cor cinzenta, aproxima-se velozmente e atropela os dois lutadores. Do lado do passageiro sai em passo de corrida um individuo, que num ápice abre o porta-bagagens do Tesla, retira de lá uma mochila pequena e volta para dentro do Citroen, que num ápice desaparece nas ruas da cidade.
Os dois lutadores ficaram estendidos no chão, imóveis, enquanto as testemunhas, a medo, se aproximam, mais para saber se eles estavam mortos ou não. O sangue escorria pelo asfalto, e o silêncio total da cena só se quebrou com as sirenes das viaturas da polícia e das ambulâncias, que velozmente se aproximavam do local do crime.
Eu estava calmamente a tomar um cappuccino, quando tudo começou, e assim fiquei, a olhar para aquela carnificina, a pensar em que mundo estou, e o que pode levar as pessoas a fazerem o que acabei de presenciar. Via os polícias a perguntarem às pessoas o que tinham visto, mas aparentemente só perguntaram a quem não viu nada.
As ambulâncias lá por fim levaram os dois lutadores e no meio disto tudo só posso afirmar que nem um tiro foi disparado e que os ocupantes do Citroen cinzento conseguiram o que todos queriam, ou seja, levar uma mochila pequena do porta-bagagens do Tesla azul.
Passado um bocado, os polícias, o pessoal de emergência médica e os mirones foram-se embora. Só ficou o Tesla azul, que, por estar bem estacionado, e por ninguém ter dito nada aos polícias que os indivíduos atropelados saíram de dentro desse veículo, nem sequer se aproximaram dele.
Olhei em volta. Tudo calmo. Aproximei-me do carro sem despertar suspeitas. A um metro do veículo, abaixei-me, fingindo estar a apertar os meus atacadores. Olhei de novo em volta. Tudo em paz. Abri a porta do condutor e coloquei o veículo em andamento, silenciosamente.
Dei várias voltas só para me certificar de que não estava a ser seguido. Ninguém circulava nas ruas. Só eu. Encostei o Tesla numa rua cheia de vivendas e pus-me a ver o que estava dentro do carro. Nada de especial apareceu à vista, parecendo um carro alugado ou de alguém que era muito limpo.
Fui ao porta-bagagens e não estava lá nada. Fui mais minucioso e levantei vários compartimentos e num deles estava uma pequena caixa de metal vermelha, com aspeto de pesada e robusta. Para não perder mais tempo, resolvi não abrir a misteriosa caixa naquele local
Conduzi o Tesla até dentro de uma pequena mata, para quem pudesse estar a monitorizar não pensasse que algum dos moradores das vivendas à volta estivesse alguma coisa a ver com o desaparecimento desse objeto. Sai do veículo e limpei com extremo cuidado todos os vestígios da minha presença no veículo.
No meio da mata havia um pequeno monte rochoso, de onde eu poderia ver quem se aproximasse do carro, mas sem me poder ver. Não demorou muito para começar a ouvir vozes em volta do Tesla. Imaginei então que o veiculo estivesse com rastreador, e que a caixa de metal vermelha teria efetivamente muita importância.
O diálogo começou com sussurros, depois em tom normal e por último, desataram aos gritos. A coisa estava muito séria, mas das quatro pessoas presentes, só duas gritavam de raiva, e os homens do Citroen cinzento limitavam-se a pedir desculpa e a suplicar para um casal ter mais calma.
De súbito, dois clarões, indicando que tiros foram disparados, e ouvi distintamente dois corpos a caírem, como sacos atirados para o chão. Um dos membros do casal tinha morto os ocupantes do Citroen cinzento, em jeito de execução. Um silêncio brutal abafou todos os chilreados dos pássaros no final do dia.
Senti o perigo, neste tempo de drones, satélites e Air Tags. Precisava de fugir do meu esconderijo sem ser visto pelo casal. Deixei-me ficar mais um bocado, cada vez mais assustado. Passado uns momentos, vi o Tesla azul a afastar-se, na estrada, tendo abandonado o Citroen cinzento e os dois corpos.


2.     Eu, eu, e só eu

Olhei para a caixa de metal vermelha mais uma vez. Por causa dela, poderiam estar pelo menos quatro pessoas mortas. O que ela conteria? Qual o seu valor e para quem? O que eu iria fazer com ela agora? Eu já tinha retirado um veículo automóvel de um local de crime, sem justificação. O que poderia acontecer-me a mim?
De repente, apercebi-me que a caixa poderia conter resíduos radioativos ou doenças mortais. E que nas redondezas de onde eu retirei o carro, de certeza que havia camaras de vigilância, e que estas podem ser acedidas pela polícia, mas também o poderiam ser pelos assassinos ou por organizações poderosas. E perigosas.
Se a caixa contivesse algo perigoso para a minha saúde, precisava de me livrar rapidamente do objeto, e no próprio local de onde observei a execução, por baixo de umas tantas pedras pesadas, e envolto em trapos que por lá encontrei, coloquei a caixa de metal vermelha, com extremo cuidado.
Fui rapidamente para casa, não no intuito de lá me refugiar, mas sim de retirar tudo o que de importante lá estivesse, e fugir, antes que me pudessem detetar. Perto da casa, fiquei uns minutos a observar qualquer movimento suspeito. Nada, nem um som nem um movimento. Num caminhar falsamente casual, atravessei a rua.
No meu prédio, subi as escadas e fui para um andar acima do meu, observando e ouvindo. Passou bastante tempo, nem os vizinhos faziam barulho, o que achei estranho, pois estes costumam ser mais barulhentos. Talvez fosse dia de silêncio e de recolhimento no edifício, e nem me disseram nada.
Confortável com o silêncio, estava prestes a descer os degraus da escada para entrar em casa, quando vejo a luz do átrio de entrada a acender automaticamente, sem ter ouvido nenhum som. Mas se o detetor de luz foi ativado, alguém tinha entrado no edifício, e sem querer fazer nenhum barulho, o que significava problemas graves.
A luz em cada piso foi ativada, à vez, sem se ouvir nenhum som. Quem quer que fosse, era profissional. E significava que eu estava em graves problemas, pois andavam atrás de mim, e eu estava nas escadas, a ser perseguido por um profissional da matança. E não adiantava nem ir mais para cima nas escadas nem ir, obviamente para casa.
Rezei em silêncio. Confessei os meus pecados. Arrependi-me de mil e uma coisas, desde que tinha feito e de outras que não devia ter feito ou que não fiz. Tornei-me instantaneamente religioso. Revi a minha morte mil vezes, e armei-me em corajoso e em cobarde na mesma cena de encontro com o assassino.
Por fim, e depois de todas as minhas experiências religiosas e exotéricas, a luz acendeu no piso da minha casa. Eu já estava preparado para morrer quando vi quem estava a acionar o detetor. A pessoa não usava máscara nem era assustadora. Mas é um ser extremamente mortal, isso eu vos asseguro.
Levantei-me de repente e disse-lhe: “Olá, e o que estás a fazer aqui a esta hora da noite, e ainda por cima, a andar tão sorrateiramente?”. A pessoa assustou-se tanto que quase caiu escada abaixo. Ficou agarrada ao corrimão, como se estivesse a ter um ataque do coração, a respirar ofegantemente.
E eu comecei a ficar inquieto, pois só imaginava a pessoa a morrer por causa do susto que lhe preguei, ou a ter sequelas físicas e mentais permanentes, os vizinhos a virem à porta e a acusaram-me de não ter dado assistência, e eu a ser preso por causa disso. Desci os degraus e agarrei-me a ela, para a acalmar.
A pessoa lá se recompôs, e disse-me “Ó anormal, tu não atendes a merda do telemóvel e só vim ver se estavas bem, se não tinhas sido feito refém na tua casa. Saio eu de casa a altas horas para quase morrer do coração.”. E eu fiquei completamente desfeito, pois tinha alguém no mundo que tinha saído de casa para saber de mim. Quase que chorei….
Era alguém com quem tinha passado momentos bons, menos bons, francamente maus, estivemos juntos, separados, inimigos, partilhamos casa, bens, cama, amigos, e desde que nos conhecemos, nunca estivemos muito tempo sem estarmos juntos nem a saber um do outro. E só não atendi o telemóvel porque este ficou a carregar em casa.
Confesso que não era a primeira vez que ela tinha entrado em minha casa sem ser convidada, pois tínhamos confiança para isso, pois demos chaves de casa um do outro, mas tenho fortes suspeitas de que ela fazia isso só para saber se eu andava com alguém, e para nem me atrever a levar alguém lá para casa.
Ela ia abrir a porta de minha casa, e eu de repente lembro-me da minha situação, e coloco-me à frente dela, e impeço-a de entrar na habitação. Ela fica escandalizada, pois interpreta o meu gesto, puramente protetor, de como se estivesse a esconder alguém dentro de casa. E começa aos gritos. “Onde é que está essa puta?”.
E começou um Carnaval antecipado, com os vizinhos a abrirem as portas para saberem o que se passava, ela a entrar na casa e a chamar “Ó sua puta de merda, onde é que estás escondida?”, eu a tentar tapar-lhe a boca e ela a morder-me, e já nem me lembrava dos polícias, assassinos de organizações criminosas….
Sem ter encontrado nenhuma mulher dentro de casa, a Elsa ficou mais calma, e principalmente mais calada, para minha felicidade. E começou a fazer perguntas, e a não gostar das respostas. Até que ficou calada, chocada, assustada, perturbada com tudo o que eu tinha feito. E perguntou: “Estamos em perigo?
Ao que lhe respondi “Eu estava em perigo, mas depois da tua gritaria, já não devo estar, pois o assassino deve ter-se assustado e fugido”. Ela riu-se baixinho, relaxou um pouco e deu-me a mão. Despois apertou com força e com cara de durona disse “Afasto-me um bocadinho de ti e só fazes merda….


3.     O quando o telefone toca…


De repente, ouço o toque do meu telemóvel. O número é privado. Assusto-me. Resolvo não atender. Arrependo-me, vou atender, mas nesse exato momento desligam a chamada. “Porque é que não atendeste?” pergunta a Elsa. “Porque o telemóvel pode ser localizado se atendesse, não sabes isso?”, respondo, assustado.
E numa voz completamente calma e clara, a Elsa diz: “Se te ligaram, sabem quem és, e se sabem quem és, sabem onde moras, ou seja, já sabem onde estás agora mesmo.” E sorri, com um sorriso triste, melancólico, de resignação, estilo “e agora vamos morrer, por tua causa, parvalhão de merda!
Entrei em pânico. Ela tinha toda a razão. Descobriram-me e sabem tudo sobre mim. Estou lixado, e pior, arrastei a Elsa comigo. Comecei a suar abundantemente, sem reação absolutamente nenhuma, enquanto dizia para mim mesmo “Mexe-te, estúpido do caraças, mexe-te!”. Mas nada. Nem um musculo.
A Elsa começou a colocar roupas e produtos de higiene pessoal a colocar numa mochila grande, foi ao meu esconderijo, que eu julgava que era secreto, mas que afinal não era, e tirou o que tinha de valor, e passados uns poucos minutos, abriu a porta e perguntou-me: “Vens ou ficas?”. Fui, claro.
Descemos as escadas do prédio a correr, como se fugíssemos do Demónio, porque ele estava lá em casa, mas afinal ele vinha connosco, com curiosidade para saber o que se ia passar a seguir. Atravessamos a rua e fomos para o automóvel da Elsa, atirando tudo para o porta-bagagens, sem saber muito bem para onde podíamos ir.
Ao entrar no carro da Elsa, via o Tesla azul a uns cinquenta metros, e assustado, meti-me tão rapidamente dentro do veículo que parecia estar num vídeo a alta velocidade, ao mesmo tempo que lhe dizia para ela arrancar rápido e sair dali em alta velocidade, pois “os bandidos estão ali atrás.”
Saímos da rua em marcha acelerada, e eu procurei ver o Tesla azul, para saber se nos estavam a seguir. Mas não estava, pois continuava lá parado. Comecei a entrar em pânico, pois comecei a imaginar que, se não estava a seguir-nos, é porque tinham colocado uma bomba por baixo do carro da Elsa
Parámos o carro num ermo, e depois de nos certificarmos de que não eramos seguidos, pus-me a espreitar por baixo do carro em busca de bombas, e ao não encontrar nenhuma, revolvi o carro todo em busca de algo que os assassinos pudessem ter lá posto, para nos seguir à distância ou para monitorizar as nossas conversas. Nada.
A Elsa perdeu a paciência e deu-me um ultimato: “Ou vamos já à Polícia ou tu ficas já aqui!” Eu ia fazer o quê? Com medo de ir à polícia, fugi monte abaixo, a gritar que ela também era uma assassina, que ela queria me matar, que ela era da polícia. E caí de bruços, batendo com a cabeça numa pedra.
Acordei cheio de dores, com a Elsa a olhar para mim de uma forma estranha, e reparo que tanto ela como eu estamos presos, com algemas presos à minha cama. Inutilmente tento me libertar como um animal aprisionado, e apenas faço barulho, que alerta quem nos estava a vigiar, que diz: “A princesinha já acordou do seu soninho, foi?
Reparo que estamos aprisionados num miserável armazém, e quem nos aprisiona é o mesmíssimo casal que matou os ocupantes do Citroen cinzento. Digo para mim mesmo: “Agora que meti a Elsa num belo sarilho, tenho que fazer qualquer coisa para a safar”. Mas a dúvida é o que eu ia fazer.
Do nada, aparece a mulher, que, com uma cara histérica, desata aos berros ao dizer que me matava, que me esquartejava, se não lhe obedecesse, só para me intimidar. Sinto que a atitude é falsa, que está a fazer de polícia má, e fico à espero da entrada do homem, que decerto fará de polícia bom, para contrabalançar.
Ela continuava aos gritos, com um facalhão na mão, a dizer que me ia tirar um olho se eu não dissesse o que ela queria, que ia abrir um buraco na barriga da Elsa, que ia fazer isto e aquilo, mas sem convicção nenhuma. E eu a aguardar pela entrada do meu “defensor”.
De súbito, o homem entra e empurra brutalmente a mulher, e em vez de se portar como o “policia bom”, agride-me ferozmente, perguntando com voz enraivecida “onde é que puseste a caixa, cabrão?”, e aperta-me a garganta. Sinto as minhas forças a esvaírem-se, e apago. Outra vez.
Acordo de novo e ainda com mais dores do que na primeira vez. Mas desta vez estou no chão, com a Elisa, desmaiada ou adormecida, ao meu lado. Vejo que o homem, desacordado ou morto, jaz algemado a um cano. Não percebo nada do que está a acontecer, e finjo-me desacordado. Por vezes, fingir de morto é a melhor solução.
Chega a noite e ninguém acorda, ou continuam todos a fingir-se de mortos, como eu. Ou então o tipo está mesmo morto. Sei ao menos que a Elsa está viva, pois respira e por vezes estremece-se. Vejo que ela não tem cordas nem algemas, assim como eu. Quem nos libertou e aprisiono a “besta” não faço a mínima ideia.
A mulher surge, com um semblante calmo e pacifico. Olha para nós a rir-se e diz: “Já podem parar de fingir-se de mortos. Já basta um.” E a Elsa levanta-se e diz-me: “Anda, levanta-te.” Levanto-me desconfiado, pois fiquei a saber que sei muito menos do que devia saber, e que tudo me passou ao lado.
Olá, vamos então às apresentações formais. Eu chamo-me Maria, e pertenço à Interpol. Ando atrás desse bandido há mais de dois anos, e sem ter obtido resultados, tive de me envolver fisicamente com ele para me poder integrar no seu grupo criminoso e monitorizar as suas muito perigosas atividades ilícitas.”
“Não sei porque estou a confessar isto tudo a vocês, mas na realidade, só quero devolvam a caixa de metal vermelha para poder tirar férias disto tudo, e ir para bem longe.” E com isto chegaram outras pessoas que se identificaram com crachás da Interpol, descansando-me, por fim, pois encarei a confissão dela como real.
 

4.     Epílogo, ou talvez não…


Mesmo bastante combalido, sigo com os agentes da Interpol, numa coluna de carros descaraterizados, até ao local onde tinha guardado a caixa de metal vermelha. Ali jazia a fonte de tantos problemas, ainda decerto enrolada nos trapos velhos e debaixo de umas pedras pesadas, tal como a tinha deixado, tão poucas horas atrás.
Próximo do local, estavam polícias e investigadores a examinarem o Citroen cinzento e os corpos de dois homens, e se bem que culpadas de atropelamento e fuga, eles mereciam ter sido entregues à justiça, e não executados sumariamente daquela maneira.
Chegado ao local, tirei as pesadas pedras do lugar para tirar o monte de trapos que continham a caixa de metal vermelha, mas quando suspendo o objeto, o que agarra o embrulho é uma pinça de metal, manuseada por um individuo vestido com um fato completo de proteção. Todos os outros agentes estavam a uma distância segura.
Seus filhos da p…. “, grito eu. “Porque é que ninguém me disse nada que isto era perigoso?”. “Potencialmente perigoso”, corrigiu-me logo um outro individuo, igualmente vestido com um fato completo de proteção, que me disse para me despir, e nesse mesmo local deram-me um banho completo com substância qualquer.
Eu nunca fiquei a saber o que realmente tive nas mãos. A caixa de metal vermelha tanto podia conter material radioativo, vírus ou bactérias, acessos a ogivas nucleares ou um pelo encravado de Judas Iscariotes. Também, e felizmente, a minha saúde não ficou afetada, pois ainda ando por aqui.
A Elsa também anda por aí, comigo, mas sempre com receio que me meta em sarilhos, e por isso não me deixa muito à solta, e eu também não me quero ver muito solto, pois já vi que tenho propensão a meter-me em situações menos claras. Mas pelo menos já tenho uma história para contar aos netos. Se os tiver, e se acreditarem em mim.
Passados uns tempos, estou eu sossegado a tomar um cappuccino, precisamente no mesmo local onde decorreu as agressões mutuas e o posterior atropelamento, e de onde eu desviei o veículo elétrico com a caixa de metal vermelha, quando se aproxima um Citroen cinzento, e instantemente entrei em pânico.
Bebo o cappuccino de um gole, e fujo vou para dentro do café, e lá fico a fingir olhar para a montra dos bolos, como que hipnotizado, com bastante medo que alguém entre e me dirija a palavra. E de súbito alguém diz, ao meu ouvido, num tom meloso, mas que para mim me pareceu bastante ameaçador: “pagas-me um cappuccino?....


terça-feira, 4 de janeiro de 2022

O último resistente do Trabalho Presencial



A manhã enevoada prossegue sem ritmo, sem som, sem vultos. O frio húmido lá fora enregela até aos ossos, e eu minto para mim mesmo, dizendo que o este frio é revitalizante para o corpo e para a alma.

De súbito, o silêncio da manhã quebra-se quando touço o tocar do telefone fixo da minha secretária, e pasmado, fico a olhar para o estranho objeto, pois julgava que esse telefone era apenas para exposição, como os defuntos aparelhos de telefax.

A medo, aproximo a minha mão do auscultador do telefone fixo, a pensar: "Das duas uma, ou alguém ainda sabe que existo e quer saber se ainda cá estou, ou então é alguém que se enganou no número". Mas infelizmente não era nenhuma das duas hipóteses.

Quem me estava a ligar era uma criatura que odeia profundamente as novas telecomunicações, e por isso não me contatou, como os outros, por email ou skype. Ela ainda é do tempo em que se pediam as chamadas telefónicas às operadoras dos TLP.

A manhã quase perfeita desmorona-se nesse instante, pois do outro lado da antiga linha analógica ouço a sua voz arrogante como só os fracos de espirito conseguem ser, e altamente autoritária.

Tremi por dentro e por fora, e amaldiçoei a minha vida. Pensei "Porque raio não estou em teletrabalho?Engoli em seco dezoito vezes, pois a minha garganta estava mais seca que um Martini, e disse:

Mas que prazer. Muito bom dia, colega. Em que lhe posso ser útil?” E fiz para mim próprio o sorriso mais cínico que consegui, sabendo que a minha manhã tinha acabado, que o meu dia tinha acabado, que o meu precioso sossego tinha acabado. Talvez para sempre.

A pessoa em questão queria algo muito simples, ou seja, que lhe ensinasse toda a Cabala em três frases, que fizesse Vodu sem tocar nas teclas, e que lhe transmitisse por telepatia todos os meus conhecimentos sobre novas tecnologias. E isto sem dor.

Pedia-me assim o impossível e no imediato, e que eu que nem ousasse dizer que não, que não adiantava invocar a razoabilidade ou qualquer impossibilidade técnica ou humana. E o seu pedido rapidamente se transformou em exigência, e a exigência em ameaça.

Eu já pedia a todos os Santos que houvesse um apagão geral quando ouço claramente a campainha de casa da fera que me estava a ligar a tocar. Sorri, esperançado.

E a pessoa disse: “Colega, agora não posso mais perder tempo a falar consigo, pois acabaram de chegar os meus netos para me visitar, mas descanse que eu já volto a ligar”. E eu, cordialmente me despedi da criatura, e desliguei.

A cantarolar, arranco da parede o fio do telefone fixo, quebro o desgraçado do aparelho em vinte e três pequenos pedaços, arrumo os meus pertences, borrifo com água benta todo o espaço, penduro alho, e já de mochilas nas costas, elaboro um email para o meu chefe.

Chefe, é só para informar que irei para teletrabalho para sempre, mas se alguém me ligar através de um telefone fixo, digam a essa pessoa eu fui só tomar café, mas que volto logo. Abraço”.

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Amar

 

Amar é das palavras mais utilizadas, mas realmente nunca me questionei sobre realmente o que Amar significa.

Eu Amei e Amo muitas coisas, como livros, filmes, quadros, esculturas, músicas, estilos, tendências, ideias, ideais, lugares, cidades, e também algumas pessoas.

E também poderia amar animais de estimação, como tantos fazem, mas ainda não me deu para isso...

O meu Amor por tudo o que não são pessoas é de sentido único, pois amo e não espero retorno. E nem sequer sou ciumento, pois gosto muito que outras pessoas amem o que eu amo.

Amar pessoas, a maior parte das vezes, é extremamente complicado, muito mais do que amar simplesmente coisas materiais ou imateriais. Ou animais.

Posso Amar uma figura pública por gostar do que faz ou como o faz. E amo-a até me fartar dela.

Posso Amar alguém da minha família apenas por ser do meu sangue.

Posso Amar uma pessoa, romanticamente, mesmo sabendo que essa pessoa não me ama, mas se não a conquistar, sei que vou sofrer, mas superarei o drama e vou partir para outra.

Posso Amar uma pessoa, romanticamente, acreditando que essa pessoa me ama, mas se afinal essa pessoa não me amar, ou deixar de o fazer, regresso ao parágrafo anterior.

Amar romanticamente é um ciclo sem fim de ilusão, desilusão, sofrimento e superação. E desiludam-se todos o que acham que Amar é um festival sem fim de caricias, carinhos, frases doces e sentimentos lindos.

Quem tinha razão sobre Amar era Vinícius de Moraes, que termina o seu Soneto de Felicidade com "Amor é Infinito enquanto Dure"!

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

A Lua

 



Uma Lua enorme apareceu de súbito de entre as árvores, e tão fortemente iluminada que mais parecia uma estrela gigante, num céu profundamente negro.

Desde há minutos que ouvia uivos de lobos, e pelo som senti que estavam perigosamente perto.

Sem outras opções, subo a um pinheiro bravo com ramadas fortes, para poder suportar o meu peso, trepo até aos ramos mais altos, e amarro-me fortemente ao seu tronco.

Nesse preciso momento inúmeros lobos passam por baixo de onde estou, a perseguirem em alta velocidade uma presa que não consegui ver bem o que era, mas que me parecia envolta numa bela luz dourada.

Tão excitados estavam os lobos na sua  perseguição que, aparentemente, nenhum detetou o meu rasto, pelo que abandono rapidamente a árvore e fujo dali.

Necessito de abandonar a floresta, mas o problema é que esta é enorme, e se não sei onde estou, muito menos consigo saber para onde tenho de ir.

A Lua surge novamente e diz-me que me acompanha, que me apoia, que me vai aquecer e iluminar o caminho, e eu, com a esperança renovada, sigo na sua direção.

Do nada deparo-me com uma colina íngreme, o que me deixa bastante satisfeito, pois é sabido que os lobos não apreciam muito este tipo de terreno.

Mas a minha preocupação de sobrevivência continua, pois poderei estar a escapar de lobos me encontrar com ursos ou coisa pior, como buracos ocultos no gelo.

Mais uma vez, a Lua diz-me que devo permanecer confiante e calmo, e que esta aventura terá no seu final uma agradável surpresa, e eu sorrio, confiante na sua palavra.

Quando chego ao alto de um alto penedo para tentar avistar o final da floresta, deparo-me com um brilho dourado intenso, a rodear uma criatura.

Apesar do enorme susto que tive ao ver algo tão estranho, senti que aquela luz dourada e quente me estava a atrair.

A neve fofa abafa o ruído dos meus passos, e estou cada vez mais próximo, e a ver cada vez melhor tão estranha criatura.

Ao chegar mais perto, verifico que é uma criatura lindíssima, mágica, da qual nunca tinha visto nem ouvido sequer falar.

Reparo com tristeza que a bela criatura está ferida, com fios de sangue a correr pelo corpo, e compreendi que tinha sido atacada pelos lobos.

Ao notar a minha presença, a criatura assustou-se, mas não conseguiu pôr-se em fuga, tal o seu estado de fraqueza extrema.

Senti no meu intimo que tinha de levar a criatura dali, pois de certeza que daí a pouco tempo os lobos voltariam, para terminarem o que já tinham começado.

Pego na criatura nos meus braços, e para além de parecer não ter qualquer peso, até me dava a sensação de eu próprio estar a flutuar.

Animado com esta nova vantagem, começo a correr montanha acima, ouvindo cada vez mais longe os lobos a uivar de raiva ao longe, frustrados.

Chegámos perto do topo da montanha mais alta das redondezas, e descubro a entrada de uma caverna que me pareceu bastante acolhedora.

A caverna era perfeita para nos acolher, proteger e aquecer, pois, para além de servir de abrigo, permitia ver sem ser visto.

Dentro da caverna, vejo a criatura rapidamente a recuperar dos seus ferimentos, sem eu ter necessidade de fazer absolutamente nada.

À medida que se recuperava, o brilho da criatura aumentava, e as suas feridas sararam completamente em questão de poucos minutos.

Assim que ficou sarada, a criatura assumiu uma forma completamente humana e asas surgiram das suas costas, enquanto eu caí de joelhos, tal o meu espanto.

E o Anjo falou comigo numa estranha e linda língua, completamente desconhecida para mim, mas mesmo assim, consegui perceber tudo o que me disse.

O Anjo contou-me que, em desespero, tinha pedido à Lua que o salvasse, mas que teve como resposta que não podia, pois estava muito longe.

Mas a Lua tinha-lhe dito que ia enviar a pessoa perfeita para o salvar, e que estivesse descansado, pois a ajuda chegaria mesmo a tempo.

Dito isto, o Anjo fez-me uma profunda vénia de agradecimento, e voou em direção à Lua, a sua eterna companheira.

E foi assim que eu fiquei a saber que há muita coisa para além do que vemos e sentimos, e muitas delas são mágicas e lindas.

E que nada na vida acontece por acaso….

(E um Feliz Natal a quem leu este texto)