segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Fernanda (2 de 2)



Fernanda foi viver sozinha na casa que era da sua avó, quando esta foi acolhida num lar.

Amarelinho surgiu pouco tempo depois, pois é sabido que mulher que está só tem de ter um gato!

Magro e infeliz no início, depressa se tornou o inverso, para gaudio da sua dona.

Quando encontrou o seu “outro gato” esse também estava magro e infeliz.

Mas para felicidade da “sua dona” permaneceu esbelto.

Demorou tempo até esse novo “gato” esquecer os seus males de amor.

Ele demorou mais algum tempo até saber bem o que queria….. pelo menos dela…

O aspecto de Ricardo era, ao mesmo tempo, uma bênção e uma maldição.

Bênção para Ricardo, maldição para Nandinha.

É que se a beleza fosse pecado, ele iria para o Inferno!

E como ela estava ciente do perigo de o perder para as oferecidas…

Por vezes os seus gatos desapareciam.

Um desaparecia pela janela, quando esta ficava aberta, em dias de maior calor.

Era visto nos telhados …. a ver as vistas. E a ver as gatas.

O outro gato desaparecia pela porta, e não era preciso deixarem-na aberta.

Era visto na rua …. a limpar as vistas. E a ver as gatas.

E como a Nandinha sofria com os desaforos de ambos os seus gatos.

Não sei quantas vezes chorou…. mas foram mais do que ela merecia.

Tempos passaram. E alguma água correu sob as pontes….

Ela perdeu-o. Foi-se. Deixou de o ter.

É verdade. Todos o sabiam.

Nandinha perdeu finalmente o medo … que tinha de perder Ricardo!

O Amarelinho foi-se enroscar nas suas pernas. Ronronando, exigia festas, sendo o seu desejo prontamente satisfeito.

De repente a porta abriu-se, despertando-a dos seus pensamentos. Era o seu Ricardo….

Olá Amor, fui-te comprar as bolachinhas que tanto querias ontem e já não tínhamos….

E o rosto dela iluminou-se como uma Árvore de Natal….

….como só as grávidas felizes conseguem fazer!

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Fernanda (1 de 2)


Fernanda caminhava apressada rua abaixo, pisando ao de leve o quente alcatrão.

Ao chegar à porta do prédio a ansiedade fez com as chaves saltassem da sua mão, mas apanhou-as ainda no ar.

Ela ligou-lhe ainda antes de fazer rodar a chave da porta de entrada, com o telemóvel firmemente prensado entre o ombro e a orelha.

Adentrou a porta do prédio e zarpou escada acima, nem reparando que o elevador estava estacionado no rés-do-chão.

Abriu a porta de casa e deparou com o seu fiel gato a fazer de cão, à sua espera na entrada.

Mas onde estaria o outro gato, o “seu outro gato”, também ele de olhos verdes? Estranhou.

Ligou-lhe de novo. Mais uma vez foi para a caixa de mensagens. Estranhou. Sentou-se no sofá e abanou-se. Realmente estava muito calor.

Descalçou-se e com visível satisfação e aninhou-se no sofá, ao mesmo tempo que o ronronadeiro passou à sua frente.

Pensou nos gatos da sua vida. Realmente tinham os dois muito em comum.

Amarelinho foi o seu primeiro gato. E com pêlo por todo o lado.

Ricardo foi o seu segundo gato. Mas com muito menos pêlo.

Amarelinho era um gato comum europeu. Popularmente chamado de gato sem raça.

Ricardo era do tipo comum europeu. E muito popular junto de determinado público.

E a Fernanda encontrou-os a ambos na rua, em períodos diferentes.

Amarelinho foi encontrado debaixo de um automóvel, faminto e sujo, e num ápice encontrou em Fernanda um lar.

Ricardo foi encontrado junto ao Minimercado, e também num ápice foi para o lar de Fernanda.

Lembrava-se por vezes da sua pacata vida, antes de arranjar os seus gatos. Tão pacata que nem social chegava a ser.

Trabalhou desde sempre no Minimercado da vila, e sentia-se feliz.

E sentia-se feliz simplesmente por poder contactar pessoas. Adorada pelos velhinhos e invejada pelas suas esposas. Mas sem rancor….


Era a Nandinha. Fernanda só passou a ser tempos depois, e apenas para uma certa e muito especial pessoa….

(continua....)

sábado, 8 de outubro de 2016

O Zé do Tuk-Tuk (3 de 3)



Ao cair para trás, Zé quase derruba uma senhora, e estando já os ânimos exaltados, começou logo aí uma confusão do "empurra empurra" e "olha que te vou ao focinho", altercação essa muito bem aproveitada pelo nosso perninhas de alicate para ficar fora da vista da sua "nemesis" escandinava!

Assim o Zé esgueira-se Rua Augusta abaixo até ao acesso do Arco, e nem se atreveu a olhar para trás, pois sentia a Karen a morder-lhe os calcanhares. Ele só pensava que o mundo inteiro se tinha juntado para o tramar, e não estava longe da verdade. Efectivamente, até a polícia já estava no encalço dos dois....



No acesso ao topo do Arco da Rua Augusta, Zé passou rapidamente por baixo dos torniquetes, apanhando à justa o elevador de acesso ao patamar intermédio, e ao virar-se vê Karen a chegar, esbaforida e cada vez mais irritada.


Chegado ao patamar, Zé subiu a muito custo as estreitas escadas do acesso ao topo do Arco da Rua Augusta, sem imaginar que ia para um beco sem saída. Ele nunca tinha estado lá em cima, e devia achar que havia um escorrega gigante para o levar outra vez à rua.

Alcançado o cimo, Zé ficou de boca aberta com a vista esplendorosa que tinha da cidade de Lisboa, com a Praça do Comércio e o Tejo aos seus pés.... Idílico, até levar uma murraça no cachaço que foi logo ao chão! Estranhamente, nesse momento, ele sentiu-se na pele de um herói prestes a morrer pela pátria. Deviam ser efeitos do álcool e da pancada....


A dinamarquesa agarrou o Zé em peso e subindo o parapeito, pendurou-o de cabeça para baixo! Ele chorava e berrava como um bezerro desmamado, Karen gritava palavrões e os turistas, alvoroçados por tanta agitação, filmavam e tiravam selfies, e aquela cena toda tornou-se instantaneamente viral no Facebook, Instagram e Youtube!

Ao ver a dinamarquesa em pé no parapeito, mas sem imaginar que estivesse a segurar as pernas do Zé, os polícias começaram a gritar para que ela levantasse os braços e descesse. Nós sabemos que os nórdicos normalmente são pessoas que respeitam as autoridades, e Karen não era excepção. Ordem dada, ordem cumprida, e com um sorriso fino de ironia tipo “vocês é que mandam”ela levantou ou braços….

E Zé cai de cabeça do Arco da Rua Augusta abaixo!

Todos conhecemos o velho ditado “ao menino e ao borracho põe-lhe Deus a mão por baixo?” E foi mais uma vez isso que aconteceu. Deus meteu um toldo de Tuk-Tuk por baixo do Zé. Caiu de fuças e partiu-se todo, mas incrivelmente sobreviveu!



Bem, e o que aconteceu a seguir?

Pelo que ouvi dizer, a segurança Carlinha está agora dedicada a tempo inteiro à apanha dos Pokemons, tendo como companhia inseparável a Inger....

, tendo visto muito próximo o final da sua vida, achou que tinha recebido uma dádiva divina e que era altura de se regenerar e de se purificar. E tornou-se um monge tibetano e foi viver incógnito para as Ilhas Canárias. Os seus pais só desejam que ele fique por lá por longo e bom tempo e que não os chateie!

Karen tornou-se uma estrela em Copenhaga, após ter publicado o seu livro "Pendurei-te pelos pés!" em que narrava todos os episódios das suas férias em Lisboa, culminando, claro está, com a captura do agora famoso perninhas de alicate.

E esta semana Karen anunciou que está a preparar um novo livro, que contará as suas aventuras das próximas férias, a terem lugar numas certas ilhas espanholas.....


(Fim)

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

O Zé do Tuk-Tuk (2 de 3)




Apesar de estar muito taralhoco do vinho e do violento choque, e sei lá mais do quê, Zé levantou a cabeça e viu a Karen (a tal que lhe estava a arrancar cabelos) a fitá-lo, e reparando nos olhos cheios de ódio e de vingança da mulher, ele acagaçou-se de medo de tal maneira que se pôs em fuga, mas devagarinho, pois uma das suas pernitas de alicate estava num estado bastante lastimoso.

Inger (a outra dinamarquesa) ainda estava caída em cima da Carlinha segurança, que chorava não de dores, mas por ver que se tinha esbardalhado o telemóvel e do Pokemon Dewgong ter fugido de susto, com toda aquela situação.

Entretanto o Zé tinha-se arrastado até à Rua da Prata, onde se encontrava um ajuntamento de pessoas que aguardavam pacientemente a sua vez para visitarem as Galerias Romanas de Lisboa. Dizendo “mano, dá aí uma folguinha” esgueirou-se para dentro do buraco, situado entre os carris da linha do eléctrico, sob os protestos dos que aguardavam na fila. Debalde, Zé já lá estava dentro.

No meio do seu torpor alcoólico, o Zé pensou que aquilo era uma “entrada muito esquisita do metro” e pensou ir até à casa da prima que vive na Reboleira, escapulindo-se de vez daquela gaja irritante.

Karen utilizou o mesmo método do Zé para passar à frente das pessoas, com uns brutos “escuse me, escuse me”. Mas para seu azar o buraco de entrada era estreito demais para ela. Era como tentar meter o Rossio na Rua da Betesga. Furiosa, ainda colocou a sua cabeçorra no buraco ainda a tempo de ver os pezinhos do trengo a esgueirar-se, lá ao fundo.

Zé sentou-se um pouco e pensou “mas onde é que conheci estas gajas?’”. Ora, ele conheceu-as onde gosta de as conhecer, num qualquer restaurante do Bairro Alto. E depois foi o normal “I take the picture”, “smile, smile” e “andem cá provar esta bela pomada” e foi num ápice que beberam umas cinco garrafas de tinto Quinta da Bacalhoa num Wine Bar do Castelo. E depois? "Bora lá conhecer Lisboa, girls!"

Pararam religiosamente em todos os pontos de interesse… do bota abaixo, claro, que as vistas da cidade ficam muito mais desanuviadas com vapores do álcool, e se o Zé gostava muito, elas ainda mais! E lá prosseguiram colina abaixo até dar a filoxera ao perninhas de alicate, lá pelas ruas de Alfama, e tudo se descontrolar.

Ao verem o que estava a acontecer, os guardas das Galerias Romanas pegaram no Zé pelos colarinho e arrastaram-no cá para fora, para contentamento principalmente da Karen, que ficou a esfregar as mãos de contente, antecipando a "trepa" que ia dar no coiro daquele desgraçado!

Zé, que entretanto tinha adormecido nas Galerias Romanas, só se apercebeu que estava “cá fora” ao sentir uma brisa na cara, e ao abrir lentamente a pestana deu de caras com os olhos tresloucados da dinamarquesa, e dando um gritinho um tanto ou quanto suspeito, caiu para trás...

(continua)

terça-feira, 4 de outubro de 2016

O Zé do Tuk-Tuk (1 de 3)


O Tuk-Tuk voava a grande velocidade através dos incrivelmente estreitos becos de Alfama, como se o próprio demo o perseguisse, e de perto. Para além do ruído estridente da buzina, Zé gritava a plenos pulmões “sai-me da frente ó mongas” a cada cruzamento, ou seja, a cada metro e meio, sem contar com as portas das casas que davam para a rua, ou seja, de vinte em vinte centímetros. Lindo.

As duas turistas dinamarquesas, enfiadas nos desconfortáveis bancos da infortunada viatura, e ambas já com idade para mais juízo, iam ruborizadas pela emoção e com um olhar tão maroto e traquinas que não enganavam ninguém. Também pudera, nunca tinham tido tanta carga de adrenalina junta. E lá iam, agarradas como podiam aos ferros do animal, tentando não se baldarem.

Mas aquelas gajas é que foram as culpadas, sô guarda, embebedaram-me….”, disse mais tarde e muito menos bêbado, Zé, na Esquadra do Terreiro do Paço, onde prestava declarações junto do Agente Duarte, que apesar de batido “em cenas doidas” e já ter visto muita macacada, estava totalmente aparvalhado com o que dizia aquele energúmeno, sentado perante ele.

Lentamente, o Agente Duarte puxa a cadeira para ficar mais perto de Zé e deixa mesmo de escrever, e abaixa-se um pouco para ouvir ainda mais atentamente, criando um efeito de pura cumplicidade entre eles. À volta do Zé já estavam uns catorze ou quinze mamíferos, a maior parte deles polícias, mas já à mistura também havia turistas e carteiristas. A fauna toda, portanto.

Acto contínuo Zé puxa de um cigarro e acende-o, ao mesmo tempo que saboreava a primeira bafo pergunta “posso fumar?” e uma mão responde “caga nisso”, pois toda a gente queria é que ele contasse a história todinha, pois esta prometia.

A carripana do Zé chega com estardalhaço à Casa dos Bicos vindo sabe-se lá de onde e desce de uma só vez os três ou quatro degraus que aquela estranha construção tem à frente, enquanto diz qualquer coisa como “Saramagooooo” numa entoação que nem por sombras parecia com uma língua, viva ou morta.

Por falar em língua, com este último golpe da carripana as dinamarquesas tinham aterrado de queixos junto a um ferro horizontal que separava os condutores dos conduzidos. E uma delas tinha trincado fortemente a língua e urrava de dor e de ódio, e a outra, bêbada de ginja de Alfama e de tinto de Azeitão, urrava de adrenalina e de riso.

A dinamarquesa, ao ver o seu próprio sangue, agarra o cabelo do Zé como se não houvesse amanhã e este, assustado dá ainda mais gás à geringonça demoníaca que, guinchando como uma porca, põe-se aos ziguezagues pela Rua do Comércio, assustando de morte quem por lá andava.

A “camone” continuava a arrancar furiosamente o escalpe do Zé, enquanto este ia olhando para trás dizendo “atão minha, qé qé isso?” e nem viu que o seu Tuk-Tuk estava completamente desgovernado e pronto para chocar em qualquer coisa. E afocinhou brutalmente na porta da frente da sede dos Impostos!

Choveram dinamarquesas por toda a Rua do Comércio e arredores, e uma delas foi aterrar em cima da Carlinha, a segurança que estava à entrada do edifício, e que nem viu o trambolho enorme a vir na sua direcção pois estava absorta em contar aos amigos por whatsapp que tinha acabado de apanhar o raríssimo Pokemon Dewgong! Atenção aos menos atentos. Apanhar esse espécime não é para todos, garanto-vos.

(continua)