sexta-feira, 18 de agosto de 2017

O Pilha-Galinhas 4 - O Gato Vadio (final)

Sem sequer ter dado pelos dias terem passado, numa bela manhã, ouço lá fora uma voz de homem “- Ó de casa”.
Espreito pela janela e vejo um jovem parado, para lá do portão. Desconfiei logo e nem queria acreditar no que os meus olhos viam.
Apesar de ter vontade de sair disparada de casa para falar com ele, armei-me em difícil e respondi “Que quereis?”
“- Queria dar-lhe uma coisa” respondeu ele de pronto, e acrescentou, num tom mais baixo, mas ainda audível “E pedir-lhe perdão”.
Dei por mim a sorrir, mas apesar do formigueiro que estava a sentir por todo o corpo, continuei no mesmo tom. E na mesma atitude  “- O que for que me quereis dar deixe aí à entrada. E o perdão vá pedir a Deus. A igreja é ao fundo da rua.”
E corri a cortina, mas não sem antes o mirar mais uma vez. Realmente ele não era nada de deitar fora.
Arrependi-me da minha arrogância imediatamente depois de sentir que ele se estava a ir embora, e saí disparada de casa, disposta a chamá-lo de volta.
Estava a imaginá-lo de cabeça baixa e passo arrastado em direcção à igreja, quando, para minha grande surpresa, deparo com um jipe a afastar-se.
“- Os pilha-galinhas agora andam de jipe??!!” Pensei. E vejo o veículo a descer a rua, em direcção à igreja.
Ele tinha-me deixado um pequeno pacote na entrada e tive de enxotar o meu cão, pois ele andava de volta do embrulho a abanar o rabo, contente por sentir o cheiro da sua “amada”. Sinceramente cão, desiludes-me cada vez mais!
Trouxe o pacote para dentro de casa e coloquei-o em cima da mesa da sala. Não ia abri-lo naquele momento, pois ainda estava com esperança que ele passasse por minha casa de regresso da igreja.
Passados três dias sentei-me numa cadeira da sala e ao encher-me de coragem, abri o pacote. Este estava embrulhado na perfeição, com excelente papel e amarrado com um bom fio. Lá dentro encontrei uma dúzia de ovos e uma carta! Ovos? Só podia estar a gozar comigo.
Li a carta. Mas que carta! Julgava eu que já ninguém escrevia assim, nesta era de sms e emails. À mão, com caligrafia inglesa, com caneta de aparo de um azul cativante. Senti-me nas nuvens com o que estava escrito.
Para além de rasgadas desculpas, o “pilha-galinhas”, de seu nome Pedro, alegava que não tinha necessidade económica nenhuma para andar a roubar criação, e que apenas o fazia pela emoção que isso lhe proporcionava. Mas que doentia justificação, pensei.
A missiva terminava com muitos agradecimentos por não o ter morto, e que agora dá outro valor à vida e que largou de vez o vício de adrenalina.
E acrescentou o seu número de telemóvel, dizendo que gostaria muito que eu lhe ligasse.
“- Mas o tipo é completamente doido varrido?” Pensei. Mas parte de mim ficou totalmente alvoroçada. Talvez fosse pela letra, pela educação, pela forma de abordagem ou simplesmente pela sua sinceridade. Fiquei desde logo tentada a enviar-lhe uma sms, mas contive-me a tempo.
“- Se ele estiver mesmo interessado em falar comigo, virá procurar-me outra vez. Eu sou uma mulher séria e não ando atrás de homem algum.” E continuei a minha vida.
Mentira! Ele não me saía da cabeça. Eu tinha de o conhecer pessoalmente. E comecei a engendrar um plano para o efeito. Ia começar a frequentar a feira da outra aldeia para o ver.
De sacola ao tiracolo lá comecei eu a comprar hortaliças e fruta no mercado da aldeia do lado. Mas dado o meu objectivo secreto de o ver, as compras demoravam sempre muito tempo a serem feitas.
Um dia pareceu-me vê-lo de relance, mas para meu grande azar, surgiu de repente um conhecido meu a cumprimentar-me, e quando despachei o “chato”, já tinha perdido de vista o Pedro.
Ele tornou-se uma obsessão para mim. Liguei-me a todos os habitantes da aldeia dele que tivessem Facebook, Instagram ou Whatsapp, no intuito de encontrar alguém amigo dele nas redes sociais. Mas não encontrei nada. Parecia que procurava um fantasma.
Comecei a frequentar todas as actividades possíveis e imaginárias nessa aldeia, e ninguém falava dele. Pensei mesmo que ele se tinha evaporado ou tinha sido engolido pelas entranhas da terra.
As pessoas dessa aldeia ao verem-me lá quase todos os dias, já gozavam comigo e perguntavam-me quando me mudava. E eu, cada vez mais desesperada, aguentava.
Li a carta dele vezes sem conta, à procura de mais pistas que me levassem ao seu paradeiro. Estranhamente ligar para o seu telemóvel ou enviar sms continuava a não ser opção para mim. Que justificação é que teria agora para lhe ligar?
E confesso que muitas vezes romanceei o “nosso primeiro encontro”. Estranhamente considerava que o Carlos era o homem ideal para mim.
E assim se passaram semanas. De grandes esperanças e de maiores frustrações.
Num belo final de tarde, a Berta, de quem nada sabia desde há semanas, entrou em casa minha casa muito contente. Contente demais para o meu gosto, pois sabia que quando ela andava nestes propósitos, coisa boa não era.
“- Mana, estou muito apaixonada!” Disse-me num repente, abraçando-me com força e emoção.
Ao ouvir essa frase, tentei com todas as minhas forças mostrar-lhe uma cara alegre, mas a minha inveja pela felicidade devia ser por demais evidente. 
E sentei-me, de braços cruzados. A Berta, a transbordar de felicidade e totalmente alheia aos meus sentimentos, começou a descrever o modo como se conheceram.
“- Semanas atrás, estava eu na igreja, quando entrou um homem…..”
E ao ouvir essa frase, desfaleci…..
Fiquei assim a saber que na vida temos de seguir os impulsos no momento certo, pois um único instante de hesitação pode ser demasiado tarde. Tarde demais até para arrependimentos.
 FIM

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

O Pilha-Galinhas 3 - O Gato Pilha-Galinhas

Depois daqueles episódios ficámos conhecidas no nosso pedregoso vilarejo como “as manas cornudas!”
Garanto que não é nada agradável ser uma dessas irmãs, mas sei que podia ser algo ainda pior. Existem sempre situações piores, mesmo que estejamos no fundo do poço.
Sabia perfeitamente que o falatório e a risota não iriam diminuir nas semanas mais próximas, isso era mais que sabido, e restava-nos agora aguentar ou desistir. E tanto eu como a Berta decidimos resistir, pelo menos por mais um tempo.
Confesso que ainda me custa compreender como isto nos aconteceu, mas o facto é que nos aconteceu, e logo às duas. Maldição? Talvez, mas prefiro nem pensar nisso.
Caramba, por merecimento não foi decerto, pois tanto eu como a Berta nos empenhámos nos respectivos relacionamentos. Na verdade, tenho uma suspeita que só nos aconteceu por isso mesmo: porque nos empenhámos demais.
Sem generalizar, verifiquei ao longo dos anos que as mulheres menos ansiosas e que mostram inclusive um certo desinteresse em relação aos maridos, são aquelas que têm uma união mais estável, e mantêm os respectivos cônjuges na linha!
Claro que esta postura tem de estar dentro de certos limites, não sendo negligenciados, por exemplo, os deveres do casamento, caso contrário esse desinteresse levará à rotura, mais cedo ou mais tarde.
Contrariamente, aquelas que estão demasiado atentas à satisfação das mais pequenas necessidades dos cônjuges, são as que, a prazo, ficarão como eu e a minha irmã.
Será que os homens são como os gatos, que não se interessam por um rato cativo, preferindo ir atrás de um rato que lhes foge, nem que seja pelo prazer da caça.
Semanas após os acontecimentos relatados, o falatório na mercearia da Vicência mudou de tema, para minha grande satisfação. Estavam a desaparecer galinhas nos galinheiros da nossa aldeia.
Todos apontavam teorias, que incluíam raposas, lobos, espíritos maus e até espanhóis, porque diziam que o preço dos ovos em Espanha estava bastante alto, daí a ladroagem.
Outros diziam ainda que os culpados eram os habitantes da aldeia vizinha. Típico. Para nós, os da aldeia vizinha são sempre os culpados por tudo o que de mal acontece no nosso burgo. E eles, pelo seu lado, dizem o mesmo de nós. E andamos assim desde o século XIII, mais coisa menos coisa. E vai continuar.
Não liguei a nada do que andavam a dizer principalmente porque as minhas galinhas estavam no seu devido lugar, e acreditei mesmo que ficasse imune à crise dos roubos das galinhas.
Assim, um dia, e tal como veio, desapareceu o falatório acerca desse assunto. Depreendi que deixaram de faltar galinhas nos galinheiros. E esqueci o assunto, ainda por cima porque entretanto arranjei um feroz e valente cão.
A Berta andava atarefada a deitar coisas fora e a arejar a casa. Livrar-se dos cheiros, das recordações e hábitos é uma excelente purga. Lembro-me de ter feito o mesmo e de como me senti bem. Dizem que quando aparece essa vontade, a libertação está próxima.
Mas numa qualquer noite escura ouço uma agitação nas traseiras da minha casa, e sobressalto-me. O cão ladrou mas apenas uma ou duas vezes, tendo sossegado logo a seguir. Desconfiada por natureza, fico à “coca”.
De repente, vejo um vulto a correr pelo meu quintal. Procuro com a vista o meu cão, já a prever um violento ataque. Mas para minha grande surpresa, vejo-o a namorar, todo contente e feliz, uma robusta cadela. “- Até tu, cão, te deixaste engrupir pelo mais velho truque do mundo?” Estava pasmada.
Abro a porta das traseiras com uma sapatada e aponto a carabina. E eis que a “dócil” cadela mostrou que estava bem treinada para uma situação dessas, e imediatamente larga o “namoro” com o tanso do meu cão e tenta abocanhar o meu braço, impedindo-me de mirar.
O meu cão ficou surpreendido com a ferocidade da “bicha” - será que o parvo julgava que a cadela estava porventura perdida de amores por ele? – E começou a correr em direcção ao “pilha-galinhas”.
Foi a maior confusão! Dei um safanão à cadela e elevei a arma, mirei e disparei. Ouvi um grito seco e surdo, e o “pilha-galinhas” aterrou!
Silêncio absoluto. “- Matei o cabrão e agora estou feita”, pensei. “- E por uma merda de umas galinhas”. Tinha-me armado em forte e corajosa, mas depois de ver o triste resultado, arrependi-me imediatamente.
Perdida nesses pensamentos, e apesar dos ganidos dos cães, consegui ouvir uns ténues gemidos, vindos do local onde, pensava eu, “jazia” morto o ladrão.
Aproximo-me, já não de arma engatilhada na mão, mas quase a suplicar que ele não estivesse muito ferido. Parecia estar, pois o sangue era mais que muito,e  eu tinha de fazer alguma coisa!
Assim, o sossego do nosso vilarejo foi quebrado com as sirenes da ambulância do INEM. E toda a gente ficou a saber da história. E claro está que até a GNR apareceu. Mas em vez de enviarem soldados daqueles para “lavar a vista”, enviaram dois sem graça nenhuma.
O “pilha-galinhas” era um homem novo, mas confesso que nem lhe vi bem a cara. Como pelo menos os gemidos soavam em português, lá se foi por água abaixo a teoria dos assaltantes espanhóis. Era apenas um espertalhão que andava a utilizar uma cadela para distrair os cães.
Garanto-vos que nunca mais olhei para o meu cão com os mesmos olhos. No fundo é tão parvo como boa parte dos homens. Basta verem um “rabo de saias” e saem logo disparados a abanar o rabo. Melhor amigo do homem o caraças. Pelo menos da mulher não é de certeza!
Na manhã seguinte enchi-me de coragem e resolvi fazer duas coisas: ir ao posto da GNR e depois visitar o “pilha-galinhas” ao hospital.
No posto da GNR declarei que não iria apresentar queixa do assaltante, mas o meu propósito real era saber se iria ter problemas por ter atingido o ladrão com uma arma de fogo. Após a explicação saí de lá ainda menos descansada!
No hospital vi que o meu “amigo do alheio” estava num quarto com um GNR a guarda-lhe a porta. Quando lhe expliquei ao que vinha, o soldado julgou que eu queria era vingar-me e não me deixou entrar, de jeito nenhum.
Eu já tinha visto uma cena parecida num qualquer filme romântico lamechas, do qual nem me lembro nem do seu nome nem dos protagonistas, e nesse filme deixaram a rapariga entrar. E foi muito romântico. Mas este GNR não tinha visto esse filme. Só deve ter visto filmes do “Rambo” ou parecidos.
Dado que não podia falar com ele, tentei saber mais acerca desse tal “pilha-galinhas” e assim, determinada, dirigi-me à secretaria do hospital, disposta a contar uma historieta qualquer a quem me surgisse pela frente.
Apesar de ter sido atendida pela irmã de uma amiga minha, esta só me disse que o "malandro" morava na aldeia vizinha. Compreendi a posição dela. Afinal, eu tinha disparado contra ele. 
Confesso que fiquei ainda mais curiosa em conhecê-lo. Não sabia é que havia de realizar esse desejo tão cedo.....

(continua)

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

O Pilha-Galinhas 2 - O Gato que ficou sem rabo

Não soube nada da minha irmã durante diversos dias, apesar de morarmos na mesma rua. Descansada eu não estava, mas sabia que se ela precisasse de mim viria procurar-me.
Fiquei a saber que o tema da conversa ainda era a Berta e o Carlos quando cheguei à mercearia da Vicência, pois todos se calaram quando eu entrei. E os estúpidos que tão mal fingiram que não estavam a dar à língua sobre este assunto.
Mísero vilarejo onde um mexerico fica na ponta da língua durante semanas. Claro que este tema só passaria quando surgisse outro com igual ou superior importância. Mas como poderia isso acontecer, se não se passa nada ali?
Passados uns momentos, e para minha surpresa, surge a Berta, com uns enormes óculos escuros, e percebi logo que não estava à espera de me ver, e muito menos de falar comigo, pois cumprimentou-me com um bocadito mais de frieza do que eu esperava ou que estava habituada. Mas compreendi.
Demorámos o mínimo possível na mercearia, e reparei que nesse entretanto ninguém saiu de lá, e inclusive todos ficaram a fingir que liam os rótulos dos produtos. Até mesmo os pitosgas! Raio que os partam a todos.
Eu saí para reentrar passados uns dois ou três minutos, de propósito, para os surpreender na coscuvilhice. E apanhei-os a todos a bichanar, esses cretinos da pior espécie. E chamei-lhes de tudo, ficando eles todos de bico e calados, sem se atreverem sequer a levantar o pescoço.
Quando saí de vez, vi a Berta a sorrir. Ela conhecia-me e gostava da minha maneira de ser, pois mesmo quando as coisas corriam mal, eu fazia-lhe surpresas só para lhe agradar.
“- Pus o pulha a andar, sabias? Dei-lhe um dinheirito e uma mala de roupa. E que nunca mais me aparecesse à frente.” Disse-me ela num tom baixo e lento, como se estivesse sob efeitos de calmantes. Fiquei preocupada.
“- Ah ele já foi? E a Filomena?” Foste falar com ela?” Perguntei-lhe.
“- Aquela p….? Não. Nem vou. Ela só se aproveitou da nossa fraqueza. É que ela nunca gostou de mim.”
A minha conversa com a Berta terminou ali, pois ela virou para casa sem me convidar para entrar. Fiquei parada durantes uns instantes para ver se ela ainda me dizia mais alguma coisa, mas depois segui o meu caminho.
Cada vez mais esta história se estava a parecer com a minha, e fiquei ainda mais incomodada, pois o déjà vu era por demais evidente.
Eu era muito mais ingénua do que a minha irmã, quando tudo isso me aconteceu.
Eu e o Gonçalo namorámos bastante tempo e ele por vezes  parecia estar hesitante em estabelecer um compromisso mais sério comigo. Só se decidiu quando o ameacei deixá-lo se não ficássemos noivos, pois com a minha vida não brincava ele.
Eu tinha-o colocado entre a “espada e a parede” por saber perfeitamente que o Gonçalo tinha como lema “levo as coisas sempre até ao fim” e por isso casámos logo a seguir.
A cerimónia de casamento foi feita com pompa e circunstância, de acordo com a tradição familiar e local, que assim o exigia a jovens de famílias de algumas posses. Foi um dia feliz para mim. Não sabia eu que tinha sido esse o último dia feliz com o Gonçalo.
Estúpida. Tinha sido melhor se tivesse ficado quieta. Mas na altura nem desconfiava o que seria para mim a “maravilhosa” vida de casada. Ainda acreditava nos contos de fada, e quando me alertaram para os perigos, ignorei.
Uma pessoa quando se casa fá-lo para se libertar do jugo dos pais e ao mesmo tempo para ir viver com a pessoa que ama. Estava casada e, julgava eu, bem casada. O meu marido era desejado e eu invejada nas redondezas.
Assim, ao casar, julgava que a minha vida fosse mudar, e para melhor. Enganei-me e redondamente. Coitada de mim. Era tão tapadinha na altura. Mas no entanto julgava-me mais esperta que os outros, e teimosa, só via o que queria ver.
Mas eu não sabia é que para o Gonçalo, casar era arranjar uma mulher que substituísse a sua querida mãezinha a tratar dele. Literalmente! E mais. Era ter muito mais liberdade do que ela lhe dava.
Sim, a minha querida sogrinha conhecia a peça que tinha parido, e daí lhe ter dado sempre uma rédea curta enquanto ele esteve debaixo do seu tecto. E sim, ela era muito mais esperta e muito menos ingénua que eu.
Queridas, desconfiem sempre de um tipo que vive e sempre viveu em casa da mãe! O mais certo é que apenas vos queira para fazer o mesmo que o Gonçalo me fez a mim: criada para todo o serviço. E sem remuneração.
Passada uma semana já me estava a começar a arrepender, mas continuei firme e hirta, pois não queria dar o braço a torcer.
A partir daí foi a descida aos infernos, cheio de monólogos, de perguntas sem resposta, de mais ausências que presenças, de mais choro que riso…..
“- Gonçalo, a que horas chegaste ontem à noite?”
“- Amor, porque não ficas hoje em casa?”
“- Gonçalo, não saias hoje porque a minha operação é já amanhã.”
“- Amor, por favor, hoje fica comigo.”
“- Gonçalo, sabias que ontem foram os meus anos e nem sequer apareceste.”
Até que um dia a dura verdade bateu-me à porta. Aquela que eu já sabia ou pelo menos desconfiava fortemente. Mas que continuava em plena negação.
Um tio dele, farto de esperar e de desesperar para que o sobrinho tomasse uma posição de Homem, veio a minha casa contar-me tudo. Que o Gonçalo tinha outra família, e que a tinha ainda antes de casar comigo.
E não é que a família do Gonçalo afastou-se completamente do tio, pois consideraram que ele tinha cometido uma traição. Em que ninho de víboras estava eu metida, afinal?
Claro que o Gonçalo negou, renegou, zangou-se e até insinuou que o tio estava interessado em mim. Que todos os que andavam a espalhar boatos eram uns mentirosos e que apenas tinham inveja da nossa felicidade.
Mas o rabo do Gonçalo estava bem preso, e um dia ficou sem ele quando o meu pai apareceu lá em casa, e mais que farto das suas balelas, expulsou-o. Só aí o Gonçalo compreendeu. Vi-o nos olhos abertos de espanto.
E eu dei-lhe um dinheirito e uma mala de roupa. E disse-lhe que nunca mais me aparecesse à frente.
(continua)

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

O Pilha-Galinhas 1 - O Gato escondido com o rabo de fora

De súbito, ouço um tal grito de horror que julguei que ia pôr em alvoroço todas as gentes deste pequeno e pedregoso vilarejo, perdido nas ásperas serranias beirãs.


Olho pela janela e verifico que afinal ninguém se tinha incomodado. À parte da minha curiosidade, nem eu própria me incomodei, para além do mais, sabia que daí a pouco alguém me iria contar a sua razão, e tudo ficaria por aí.
Interrompo os meus pensamentos com o barulho da porta dos fundos a bater. Sei logo que é alguém de casa. É que ninguém me entra pelos fundos que não seja dos meus!
“- Mana, estou de cabeça perdida. Então não é que me vieram dizer que a Filomena anda a dormir com o meu homem. Logo com aquela p… de m…da que se dizia minha amiga. Com o meu homem, mana!”
 “- Mas tu não sabias?” Atirei-lhe eu. E fiz-lhe a pergunta ao mesmo tempo que colocava a minha melhor cara de dúvida que consegui.
Perante a sua negação verbal, acompanhada dos dedinhos cruzados e beijados da minha irmã, levantei os ombros e virei-lhe costas, exasperada.
“- Como é que a Berta não sabia? Realmente nunca me falou no assunto. É que toda gente sabe. Fogo, o corno é mesmo sempre o último a saber. Ou então estará ela em negação….” Pensei rapidamente.
Eu desconfiei logo quando os vi todos contentes e animados, durante as festas.
É que com o meu homem foi também assim….
Rapidamente deixo de pensar nesse meu penoso assunto quando vejo pelo canto do olho a minha irmã a sair pela porta da frente, o que significava que não se iria esconder.
Ela queria “festa!” E se ía ter com a Filomena, a minha mana ía tê-la. E saio logo atrás. Vejos outros a juntarem-se à “procissão”. E logo depois o “andor” pára em frente à casa da Filomena.
“- Ó minha p… de m…da, sai-me aí de casa que eu quero-te ir à tromba!”
A minha irmã quis levantar tanto a voz que esta soou demasiado aguda. E muitos riram à socapa da vozinha dela.
Realmente chamar “p… de m…da” com voz de menina da primária não intimida nada. Desatei a rir por dentro. Mas a minha cara continuou séria. Como convém.
Não se ouvia nada. Nem sequer um “ai”. Nem na rua nem na casa visada. Até os cães deixaram de ladrar, expectantes.
E não é que a gaja saiu mesmo?! De mãos nos bolsos do avental, cigarro apagado no canto da boca e chinela solta atrás, aproximou-se da minha irmã, a medi-la.
Ao vê-la nesses propósitos, a “cornuda” da minha irmã começou a rodeá-la, e colocando também as suas mãos nos bolsos do avental, mediu-a de cima a baixo. Como convém.
“- E que comece o combate!” Disse entre dentes.
Batida de ver cenas destas, já sabia de cor os passos que iriam anteceder os puxões de cabelos, e por isso fui para a porta dos fundos da casa da Filomena. Queria ver uma coisa no quintal dela.
“- Ó mana, larga lá essa gaja que temos aqui um porco para esfolar!“ Gritei-lhe eu, ao qual a minha irmã responde “- Eu já estou a ir!”
Eu tinha dado com o Carlos, o futuro ex-mais que tudo da minha irmã, por sinal muito mal escondido no pequeno milharal existente no quintal, por detrás da casa da Filomena.
Senti-o carregadinho de medo, pois ele sabia bem que estas duas manas eram lixadas como o caraças. E duras como os cornos. Quase que senti pena dele. Quase.
Ao ver-se acossado, saíu de detrás das espigas o meu “querido” cunhado, com uma cara de sonso de que não estava a fazer ali nada de mal. Mas eu cheirava o seu  pânico.
“- Olá Rosa. Tu por aqui?” Disse o otário, ao mesmo tempo que os seus olhos de osga vesga procuravam um sítio para escapulir. E eu a topá-lo….
“- E tu, mongo, que andas por aqui a cheirar? Vieste tratar da canalização, foi?” Respondo-lhe eu de braços cruzados, ao mesmo tempo que num passo curto e rápido, lhe corto o caminho de fuga.
A minha irmã chega entretanto à horta, e vi pela sua cara que estava mais do que pronta para lhe cortar ali mesmo as partes pudendas.
Ao vê-la avançar daquela forma o Carlos recua, pondo uma mão à frente da cara e a outra junto às partes, suplicando para ela não lhe dar uma surra ali mesmo, na horta da sua amante.
Entretanto a Filomena chega, e por momentos julguei que ela ía se colocar entre a minha mana e o Carlos, protegendo da surra o seu homem, e assumindo deste modo a relação. Mas não. Ela tinha-o deixado sozinho, entregue à sua sorte.
Eu senti ali mesmo o Carlos a quebrar. Ele baixou a cabeça, derrotado, sentindo que tinha perdido as duas. Soube então que tinha sido usado. O espertalhão tinha sido enganado.
“- Ide-vos. Se vos quereis bater que o façam lá fora!” Ordenou a dona da casa. Era o que nós queríamos ouvir. Se não ía haver pancadaria ali, iríamos para outro sítio.
Empurro o Carlos para ele ir à minha frente e vamo-nos embora, passando pelas gentes que cada vez em maior número se aglomeram em frente à casa da Filomena.
Claro que as piadas não demoraram: “Elas vão capá-lo ali em baixo no terreiro!” e “Pelo cheiro o Carlos borrou-se todo!” E riam-se muito. E eu também me ria. Mas por dentro. Só por dentro. Como convém.
Pelo percurso tomado soube que a minha irmã decidiu que ía para casa com o Carlos. Fazia bem. Se queria fazer ou dizer alguma coisa, que o fizesse dentro de portas.
A minha irmã é mais impulsiva que eu, mas quando se acalma, faz tudo muito bem pensado. E sem arrependimentos.
Numa situação destas eu agiria sem pensar, por impulso. E depois ficaria meses a remoer os remorsos e o arrependimento.
Deixei-os à porta de casa. O Carlos fez o trajecto todo de cabeça baixa, e sem largar um único lamurio. Parecia a marcha de um condenado à morte.
Quem visse a minha irmã diria que estava ufana, pois parecia que estava a trazer um troféu de caça para casa, mas eu sabia bem que era só fachada, apenas uma defesa dela.
A Berta estava era a sofrer muito com toda esta situação, e eu sofria com ela e por ela. E o pior é que tudo isto estava a reavivar-me o que eu sempre desejei esquecer de vez.

E uma falsa e estranha calmaria irrompeu neste pequeno e pedregoso vilarejo, perdido nas ásperas serranias beirãs, quando a minha irmã por fim cerrou a porta de casa.
(continua)