terça-feira, 31 de outubro de 2017

Halloween 2017



Acordo num negrume tal que nem sabia ao certo se continuava desacordado ou se tinha despertado de vez. Não vislumbrava luz em lado nenhum.
O breu diante dos meus olhos era tão intenso que parecia mesmo que o podia agarrar com as mãos, se assim o quisesse.
Os meus olhos queriam saltar das órbitras, tentando captar a mais ténue luminosidade, mas esta teimava em não aparecer.
Em pânico, pus-me de pé, mas não me atrevi a dar um único passo, pois podia estar à beira de um precipício sem o saber.
As minhas mãos tacteavam o escuro, em busca de algo, mas com medo de tocarem em algo tenebroso ou nojento.
Muito a medo, movi um pé uns milímetros, mas acho que só o movi dentro do sapato. Depois é que consegui que a sola se movesse, mas muito pouco.
Abaixo-me lentamente para tocar no chão, mas sem me debruçar, para saber um pouco mais onde estou, e os meus dedos tocam ao de leve num chão seco e liso.
Atrevo-me a colocar um pé adiante do outro, e aguardo, como se esperasse que algum bicho me mordesse ou que um bando de aranhas subisse pelo meu corpo acima.
Aguardo e nada acontece, e ouso colocar o outro pé diante do outro, ao mesmo tempo que temo cair num buraco interminável.
Ouço ao longe um barulho que considerei temível, e sinto os pelos da minha nuca a eriçarem-se como se estivessem encantados. Senti que estava perdido.
Assoma-me à cabeça que mesmo que a fera que fez o barulho não me conseguisse ver, conseguiria cheirar-me.
E como eu devo cheirar, de medo e de mais alguma coisa que surgiu agora mesmo. É que não vos disse, mas a coragem não veio comigo ao nascer, e tarda em aparecer.
Senti vontade de correr mas os meus pés ficaram presas ao solo, como se os meus sapatos estivessem colados ao solo com Araldite.
Dou um passo mais afoito e bato logo com um joelho em algo, provocando-me uma dor lancinante, sentindo que a perna tinha ficado toda desfeita em bocados, estando o sangue a jorrar a rodos.
Fiquei com medo de tocar na perna, e apenas a tento levantar, sentindo a meia a ficar toda ensopada. Penso na fera e na sua excitação ao cheirar o meu sangue.
Sinto-me a desmaiar, a desfalecer, a morrer, e os meus últimos pensamentos vão directos para a minha mãe que, coitada nunca mais me verá.
Choro convulsivamente com pena da minha mãe, não de mim nem por mim, pois eu já me considero morto, e nunca ninguém saberá o que me aconteceu.
Nem penso como cheguei ali, a esta situação desesperada, ao negrume, à beira do abismo, com a perna desfeita. Tudo está perdido para mim.
Estou sentado no chão seco e liso, com as lágrimas a escorrerem pela cara abaixo, à espera que a fera me devore, que as aranhas me piquem, que a falta de sangue me mate.
Sento-me direito, como se a aproximação da Morte me desse uma dose de coragem e consequentemente, de última dignidade.
Levanto a cabeça, como se quisesse enfrentar a fera olhos nos olhos. As lágrimas secaram e os meus olhos ficaram de súbito cheios de raiva.
Elevo a voz, já não temendo nada, nem sequer a fera que me rondava – “Vem Morte. Vem, minha desgraçada sem coração. Quero ver-te com coragem para me levares!
De súbito ouço uma voz e uma luz.
Será que é Deus que já me vem buscar?”, penso, surpreendido.
Não era. Mas quase…..
- Gui, deixa-te de brincadeiras aí no quarto e vai levar o Benji à rua. E olha que já está a ficar tarde para jantar…..

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Bem-vinda de volta, Tristeza

Sinto agora a Tristeza, alegremente, a invadir a minha alma. Sinto-a a ocupar o lugar da Felicidade que, envergonhada pela sua derrota, se retira para parte incerta. E se retira, talvez, para nunca mais voltar.
Sinto agora que todos os meus esforços e sacrifícios foram em vão. Terá valido a pena ter deixado de dizer o que sentia? Terá valido a pena ter deixado de fazer o que queria?
Talvez sim, pois permitiu manter a réstia de Felicidade acesa por mais um dia, por mais uma hora, por mais um minuto. Talvez não, pois permitiu que a sombra da Tristeza assomasse mais um pouco, até cobrir todo o firmamento visível.
Mas afinal de que queixo? Eu, que sempre considerei a Felicidade um estado de alma passageira e etérea, que num momento está real, forte, sólida, e no outro é apenas um rasto de fumo esvoaçante, réstia do que foi instantes antes.
Sempre vi a Felicidade tão fugidia como uma gazela, que assoma à vida dos incautos apenas por uns breves momentos, e nada mais. E quem a considera sua apenas a vê escoar-se pelos dedos, como areia do mar.
Sempre vi a Tristeza tão permanente como a alma, que acompanha a vida dos serenos para sempre, e mais além. É um estado de alma que soa e ecoa como uma balada ao luar numa qualquer praia, acompanhada por umas quaisquer lágrimas fugidias.
Mas não me queixo. Recuso-me. Abraço com força a Tristeza, e dela não prescindo nem prescindirei nunca mais, pois ela é minha! Ela, que verdadeiramente nunca me abandonou, nem por um instante, pois eu é que me esqueci dela, abraçando outra, que agora me deixa….

Bem-vinda de volta, Tristeza

terça-feira, 17 de outubro de 2017

Os Votos

Ao contrário da maioria dos casamentos realizados em Portugal, troquei Votos com a minha mulher. Agora é mais comum entre nós, resultado de inúmeras cenas de filmes norte-americanos, mas na altura era uma ideia (quase) original.
Já cansado do casamento sem este sequer se ter realizado, olhando para as contas a avolumar-se e sempre a questionar-me como esta ideia peregrina aconteceu, lá me decidi a terminar umas das muitas tarefas a que fui incumbido. Escrever os votos!
Claro que até esse momento a noiva já me tinha “torrado” a paciência com a porcaria dos votos, ao que eu respondia sempre com um sorriso nos lábios “estão quase quase, Amor”.
No meio de um vazio das ideias, resultado do cansaço daquela efervescência toda, resolvi escrever umas coisas quaisquer, sem pensar nas suas reais consequências. Apenas escrever. E “aquilo”, ao fim de dez minutos estava findo!
Depois de terminados, não mostrei os votos a ninguém. Pior, coloquei o raio do papel onde os escrevi num sítio qualquer e nunca mais me lembrei de semelhante coisa.
Mentira, lembrei-me sim, mas com absoluto terror, quando a noiva já estava na ala central da igreja. Mas como bom idiota que sou, conservei o sorriso.
A noiva notou logo que alguma coisa estava mal, e igualmente com um sorriso falso, questionou-me com os olhos se eu me tinha esquecido das alianças, ao que com um sorriso ainda mais falso lhe disse que não, que era outra coisa, mas sem importância.
Já não sei em que momento da cerimónia em que ambos tínhamos de sacar dos papéis (pois somos os dois fraquitos de memória e não dava para decorar) mas só um sacou. E foi aí que ela me lançou um olhar que me apunhalou três vezes, pelo menos. E garanto-vos que senti ali o meu sangue a escorrer…..
E ela pôs-se a ler o que tinha escrito, e eu só abanava a cabeça, em concordância, mas sinceramente não ouvi absolutamente nada, pois estava a tentar dizer aos neurónios que acordassem, que me tirassem daquela enrascada, e aqueles filhos de uma uva só se riam da minha aflitiva situação.
Vi pela expressão triunfante da noiva que ela estava quase a acabar, e se vocês a vissem naquele momento, reparavam logo que era uma expressão de gozo absoluto, como a dizer “e agora como te vais safar desta, meu parvalhão?”. E a minha aflição aumentou exponencialmente.
Estava eu quase a dizer algo parecido com “faço minhas as tuas palavras”, mesmo sabendo que iria o casamento terminar em divórcio logo ali no final do almoço, quando um dos meus neurónios mais conscientes me segredou “tenho aqui umas memórias vagas do que escreveste”.
Enchi o peito de ar, e resolvi retribuir o olhar à noiva, que intrigada julgou logo que ou a tinha enganado, para ela ler os votos dela primeiro, ou que eu os tinha decorado. Afinal nem era uma coisa nem outra.
E com o neurónio a segredar-me ao ouvido, fui dizendo algumas coisas que efectivamente tinha escrito, e eu estava a ficar mais serenado, os convidados iam ouvindo atentos, e o semblante da noiva estava a ficar desanuviado quando….
...o neurónio disse, …por último acho que escreveste - prometo nunca te mentir - mas estava escuro na sala e a tua letra é muito má, e por isso não tenho a certeza”.
Entrei em pânico. O meu cérebro quase explodiu de actividade, pois reconheceu que jamais noivo algum poderia ter escrito esse voto, mas tinha de terminar a minha intervenção e não tinha tempo para inventar nada.
E disse-o: “E prometo nunca te mentir”. A noiva fez uma expressão inicial de espanto legítimo, e depois de loba a olhar para um cordeiro. Vi logo que estava lixado, no mínimo. A minha cabeça latejava imenso, ameaçando explodir.
Foi aí que ouvi todos os convidados a rir à gargalhada. Olhei para eles, indignado, e eles riram ainda mais alto, pois se inicialmente julgaram que me tinha enganado, constataram que afinal eu estava a dizer um voto verdadeiro. Foi mesmo a loucura, pois até o padre se dobrou de tanto rir.
Acordo do meu sonho, ou melhor, do meu pesadelo, completamente suado. É recorrente desde há uns largos anos. E sempre me afecta muito, pois recria o que poderia ter sucedido....
Efectivamente a situação do papel dos votos esteve prestes a acontecer, mas o meu irmão ficou com o papel e entregou-mo na cerimónia. E, claro está, não havia lá nada escrito sobre nunca mentir à esposa....
Ainda deitado na cama, vejo a minha mulher a passar por mim no quarto, depois de sair do banho, e lanço-lhe um alegre “Bom dia Amor. Olho para ti e vejo-te ainda mais linda do que no dia em que te conheci”.
E tanto ela como eu sabemos que não estou a mentir….

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

A Pirâmide Humana


Já vi a Vida de muitas formas. Muitas mesmo! E agora vejo-a como um intrincado jogo de equilíbrio entre as pessoas.

E nesta visão da Vida, somos todos artistas do Cirque du Soleil, em que cada um de nós ampara e é amparado por um conjunto de pessoas, uns mais próximos e outros mais afastados, mas todos igualmente importantes.

E na minha cabeça, esse jogo de equilíbrio toma a forma de pirâmide humana (por sinal muito popular na Catalunha), encontrando-se nesta estrutura as pessoas mais importantes da minha Vida.

Esta pirâmide, que à primeira vista é sustentada apenas com força muscular e tenacidade, na realidade está suspensa apenas pelo Amor que damos e recebemos dos nossos entes mais queridos.

Nesta estrutura há um acordo tácito de auto-ajuda. Se falhar a força a um, os outros amparam-no, mesmo sabendo que ficarão sobrecarregados e cansados mais rapidamente. Mas quem liga ao cansaço quando a força motriz é o Amor?

Mas que fazer quando sinto estar a ficar animicamente cansado? Que fazer da angústia que sinto por saber que, caso falhe, poderá alguém cair ao chão? Ou muitos até?

Será que apenas a força do Amor será suficiente para todos suster? Antes assim parecia, mas agora sinto que já não. A pressão já era grande e está a aumentar, levando as parcas forças que ainda me restam.

Aguento. Tento desvanecer da minha cabeça os pensamentos de desistência, mas sinto que o Amor que me chega já não me chega, Onde está quando mais preciso dele?


Aguento. Mais um dia. Pelo menos mais um dia. É que pensando bem, o Amor não desaparece assim. E por isso aguento. A bem de todos. A bem de mim!

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Sob um Céu Cor de Chumbo

O céu avisava-me que não estava para brincadeiras, ameaçando ruir. Ribombos ouviam-se ao fundo, alertando que os deuses, de tão doidos, atiravam raios para os incautos que por baixo deles, fugiam.
Eu continuei deitado de barriga para cima, olhando desafiante para as nuvens ameaçadoras, que furiosas pela minha audácia, segredavam umas para as outras, juntando-se cada vez mais. E o ribombar cada vez mais próximo.
Via pelo canto dos olhos o intenso brilho dos relâmpagos a varrerem a planície, lançados pelos insanos deuses, cujo riso se confundia com o troar dos trovões. "Malditos", pensei eu, "Sempre a mesma coisa. Os fortes brincam com a fracos". E desafiante, continuei deitado, olhando as nuvens.
Animais passavam por cima de mim, desesperados de medo pela fúria dos elementos, mal sabendo que eram os deuses os verdadeiros causadores. Aqui e ali focos de incêndio iam surgindo, tal a proficuidade de raios que iam varrendo tudo ao seu redor. "Malditos", pensei eu.
De súbito, um deus menor olhou para mim e mesmo antes de lançar um raio, perguntou-me quase incrédulo “Mas tu não tens medo de mim?” pelo que respondi, apenas com o olhar “Não, não tenho medo nenhum de ti”. E continuei deitado de barriga para cima, olhando desafiante.
Os deuses foram parando de atirar raios, perguntando uns aos outros e às nuvens quem era eu, que fazia ali, e porque não tinha medo deles. E mesmo por cima da minha cabeça espreitavam pelo céu abaixo, para mim. E eu olhava para eles, desafiante, sem medo.
O deus menor colocou uma escada e quando esta tocou no chão desceu, indo ter comigo. Olhou para mim e depois olhou para cima, para os outros deuses e nuvens. Acenou para eles e estes responderam. Tudo estava em silêncio, aguardando.
O deus menor deitou-se ao meu lado, olhando nos olhos para os outros deuses, e parecia mesmo que lançava, como eu, um olhar desafiante. Os outros, lá em cima, estavam atónitos com tamanha audácia. E debandaram de onde estavam.
Julgava eu que os outros deuses se tinham ido embora, que tinham ido infernizar outros, mas não, desciam vagarosamente a escada e encaminhavam-se para mim. E eu olhava desafiante para eles, desta vez junto à ceara. E o mesmo fazia o deus menor.

E findou-se a tarde, comigo a olhar para um céu sem nuvens, completamente rodeado de deuses, todos deitados de barriga para cima, e que deliciados, viam um mundo como nunca imaginaram que fosse.